sábado, 26 de novembro de 2011

Guerra

Fiz o que o meu servo me pediu.

Em movimentos de descontida agitação estraçalhei o escudo baço que me era alheio, agarrei nas suas odiosas entranhas e tentei rasgá-las como t-shirt dos chineses, de fibra frágil e contrabandeada.

Com farpas de borbulhante raiva lhe atirei, afiadas e certeiras no seu sangue negro e pulsante.

Como guerreiro cansado, arfei para fora do campo de batalha, feliz por ter cumprido a minha obrigação militar, social e familiar.

Ouvi dizer, no entanto, que hoje em dia já não se usam farpas de genuína raiva; antes granadas de cinismo calculista bem aceite, porque as primeiras têm contra-indicações graves nas vítimas - coitadas, sempre as vítimas.

As batalhas já não são o que eram. O pó já não levanta por sobre os vultos caídos - levanta sobre nós, cavaleiros dignos que suam, sangram e sofrem por uma causa indecente. Empurra-nos para a prisão da vitória sangrenta.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Fumo

Inspira forte. O fumo entra em formato de cornucópia pelas narinas feridas do frio. O cérebro engasga-se com a nuvem densa que atordoa também os sentidos.

O fumo não é físico, visível e de odor palpável; não. É visceral, possui o corpo e atira-o para o desespero. No turbilhão de cinzas está envolto, de forma confusa, o pior de nós. Está o abismo do não ter, do não controlar (por não ver).

O fumo é uma obcessão. É difícil impedir que se imiscua dentro de nós, dado que para tal teríamos de parar de respirar - e de repousar eternamente na valeta, esperando pela degradação em pó.

Assim, o fumo faz parte da condição humana de alguns. Viver é sentir o fumo, umas vezes mais fraco, outras vezes mais opaco e negro, queimando a memória alegre e conservadora do eu e da espécie. Sentir o fumo, arder por dentro e chegar ao cúmulo de deixar as labaredas saír, é o que nos distingue de um calhão inerte.

domingo, 20 de novembro de 2011

Corpo-fobia

As luzes, difusas e desfalcadas de vida, pouco deixavam ver senão contornos imperceptíveis. Não era mau que assim fosse - às vezes, vaguear sem consciência ocular é muito menos doloroso. O verdadeiro target point não era a essência, mas sim o formato do frasco que a guardava e que a impedia de sair.

Mas um dia saiu. Um dia, o frasco baço quebrou-se, por culpa do relâmpago de luz que sobre ele abateu. A luz trouxe algo de inesperado: um ogre, de um verde cansado, olhos retraídos nas suas grutas de conforto, dentes pontiagudos a proteger o lábio inferior. A baba escorria, as rugas na testa hedionda eram visíveis parcamente, por trás do pouco cabelo oleoso e sujo que se colava.

Não se sabe como não partiu o espelho à sua frente, na sala. Não se sabe que caminho foi o seu para chegar ali, ao dia da confrontação. Feio seria, mas não cego. Voltou-se em pânico - outro espelho. Quanto mais rodava sobre as patas descalças de unhas retorcidas, mais outro, outro e outro. Nenhuma porta de saída que se visse. Eram 1001 ogres num pranto acriançado, ampliados e tornados ainda mais feios. A baba salpicava o chão espelhado, o tecto era também de um vidro claustrofóbico.

O motivo para estar ali sozinho era óbvio - era demasiado deplorável para poder viver com os outros ogres. Com os outros ogres de cabelo oleoso e sujo, de rugas na testa e olhos encovados. De dentes espetados. De tudo o que tinha o ogre triste, só não tinham a consciência da imperfeição. Não foram os outros ogres a trancar-lhe a porta de saída, fora a sua própria mente e a sua visão doente - disformes os olhos, não o corpo.

As luzes apagaram-se novamente (não que alguma vez tivessem estado verdadeiramente acesas, vislumbra-se o corpo mas não a mente). A cama acordou suada, envolvida pelos lençóis arrepiados do pesadelo que acabavam de presenciar.

E se esse pesadelo fosse a eternidade de alguém? Pobre ogre.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Egoísmo

Há-de sempre chegar o dia. O dia em que as planícies se deixam revolver pelos ventos inseguros, o dia em que o mar trepa de vez o cais outrora lânguido e proveitoso.

No fundo, todos os peões insignificantes deste mundo têm escondida pela roupa bem-cheirosa das regras e costumes sociais a faculdade de incharem como peixe-balão e deixarem a vista turvar-se perante a confiança nas sortes.

Podemos muito bem seguir sem esforço pela faixa apreciável da direita, deixar-mo-nos rolar pelos melhores momentos, até que sem que nada apareça à frente, guinamos subitamente rumo ao acidente. Pergunto-me até que ponto não é esse o nosso modo natural de ser, disfarçado pela convivência ética. Pergunto-me até que ponto valerá a pena nos perdoarmos uns aos outros por algo tão desastroso - mas natural.

Os nossos olhos não são uma força, apenas um indicador de fraqueza - conseguem ver os outros, mas não olhá-los. Fazem de nós irascíveis bestas desconfiadas, crentes convictas apenas do egocentrismo. Disso sim, tenho pena, mas nada mais posso fazer a não ser um inócuo pedido de desculpas e seguir em frente, com mais uns estilhaços a aparecerem no espelho que condensa as frias lágrimas do falhanço.