sábado, 28 de novembro de 2009

Disperso

Deixaste-me no deserto de Namibe
Tórrido, onde ninguém sobrevive
Onde perco as horas que um dia tive

Não me vais guiar até ti
Deixas-me caír como folha cansada
Foste o único livro que não li
Aquele que abri na página errada

Não vou esperar
Não me vou questionar...

Vou saltar sozinho, caír no escuro
Do caminho, seguir essa linha torta
Esconder-me atrás do teu muro
Deixar esfumar-se a esperança morta

Fecho os olhos

Afinal chegas, fatal como o vento
Talvez num sopro, ou num momento
Devolves-me o que levou o tempo
Detens-te no meu olhar, atento

Quebras a barreira da distância
Subitamente, acabas com a minha ânsia
De não te ter, de não te poder agarrar
Transformas o deserto no azul do mar

Lá nunca me irei afogar
Os sonhos boiam, no meio do sal
Lá ninguém nos irá procurar
O mundo fica lá fora, não nos pode fazer mal

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Sangue humano



Chovia. Aguaceiros escuros, azuis, ruidosamente zangados.

O vidro estava embaciado. Algumas gotas escorriam, satisfeitas, naquele escorrega. Faziam novos ornamentos no desenho que ali tinha sido rabiscado com o dedo, com a precisão de um bisturi.

Ela contemplava, suspirando, aquele espectáculo poderoso, através do ecrã difuso e húmido. Que temporal intenso se abatera sobre a cidade. Esperava que as condições melhorassem no dia seguinte, pois teria de percorrer uma longa distância para visitar a sua mãe, em Bonneville.

Bocejou, com algum sono. Chegara a casa cansada daquele dia de trabalho. Ainda tivera de transportar a botija do gás ao longo de 3 andares daquele prédio, visto que a sua humilde casa não tinha gás canalizado.

Tinha o jantar na panela, ao lume. Virou costas à janela, com o intuito de verificar se já estava pronto.

Não teve tempo de dar um passo. Subitamente, percebeu que algo estava terrivelmente errado.

Petrificada, sentiu o seu corpo a ser violentamente empurrado contra a janela da cozinha. Vários pedaços de vidro cravaram-se no seu corpo, magoando como alfinetadas sangrentas.

Ao mesmo tempo, evitara vários objectos supersónicos, fumegantes, que invadiam agora o local onde o seu corpo estava.

Aquele cubículo rústico acabara de explodir, pintando de fuligem o resto do que segundos antes eram paredes brancas, com algumas rachadelas apenas.

Os seus cabelos negros perderam-se no ar, 6 pisos acima do julgamento final.

A chuva tornara-se negra, também; não, tal não acontecera porque a sua pele nela se dissolvesse.

Eram apenas lágrimas. Lágrimas de quem tem um prazo de validade rígido, incontornável; de quem sabe que tudo irá acabar em breve, de quem tinha tantos planos pela frente.

O vento soprava vertiginosamente, agitando o corpo, enquanto deixava a sua alma completamente destroçada.

Não conseguia recordar-se de mais do que pequenos fragmentos de memórias, aleatórios.

Uma sala escura, com uma senhora desmaiada no chão, e cacos de uma jarra chinesa à sua volta. Depois, uma menina com a mochila às costas, com medo do seu 1º dia, a ser empurrada por alguém e a caír no pátio da escola. E tudo se esfumou...aparecendo no seu lugar um grupo de raparigas a apontar para ela, que estava sozinha, pensativa, sentada no chão.

Tentou respirar uma vez mais. O ar estava gelado. Fechou os olhos, e aquela foi a última vez que olhou para aqueles blocos de betão, desses que fazem prisioneiros e algemam sonhos. Que ódio lhes tinha.

Subitamente, recordou-se de algo essencial, e sentiu-se quente, confortável até. A tepidez dos lençois da casa da sua mãe, onde estava protegida dos lobos maus e obscenos, albinos. Lembrou-se também de uma margem de um rio, onde estava com a sua [outrora] alma gémea, a olhar para o horizonte, de mãos dadas. A seguir, um ser minúsculo, frágil, abandonado nos seus braços.

Valeu a pena, pensou. Valeu a pena respirar aquela fragância bela, sentir os arrepios no corpo, olhar os gestos que lhe entorpeceram as entranhas e a impediam de fraquejar, hesitar. Valeu a pena lutar.

Não, ela não fora derrotada, naquele passeio de betão escuro nos subúrbios daquela localidade. Aquelas manchas no chão iriam ser vistas por todos, iriam mostrar o quão igual era aquele sangue salgado.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Refúgio




Outro dia passa. Mecanicamente, tranca a porta da sede da empresa e dirige-se, ausente, para o carro. Enxota os miúdos que lhe vedam a saída, e quando estes se afastam, arranca ainda a barafustar, deixando no ar um rasto de tempo que esvoaça, perdido.

Enquanto espera, impedido pela estrada, amarrado ao tráfego algo congestionado que se faz sentir, pensa.

Pensa nas dívidas a pagar, nas pessoas que tem de entreter, persuadir, engraxar. Pensa na imagem que tem de passar, naquilo que tem de ostentar, na vida da qual não se consegue libertar.

Não lhe apetece ir para casa. Ninguém o espera. Não tem nada para além da monotonia do jantar, da televisão, do seu sono insípido.

Subitamente, aquele carro cinzento ruge rumo às montanhas, num caminho tomado inconscientemente. Tenta recuperar cada segundo perdido à medida que passa no mais singular pedaço de alcatrão, de cascalho, de areia.

E quem o conduz é agredido por uma mão fria na noite [que noutras ocasiões se limitaria a fazer carícias na face], graças aos vidros abertos até ao fundo. Cada uivo atiça a adrenalina, queima a face.

Oh, está a ficar escuro. Não lhe importa, pois a esta hora ninguém o irá incomodar com perguntas irritantes, perseguições policiais aborrecidas e assuntos da empresa.

Cada curva traça o seu destino, à medida que a distância de casa aumenta.

Até que, lentamente, começa a abrandar...e esboça um sorriso, ao fim daquele longo dia [e ao mesmo tempo, tão vazio...].

Pára o carro ao acaso na berma, deixando a porta aberta. Atravessa a estrada sem prestar qualquer atenção. Começa a descer uma colina, cheia de pedras, terra solta, galhos partidos.

É difícil ver no escuro, e ele acaba por tropeçar e caír, sujando o fato.

Não lhe importa -não agora. Tira o blazer, atira-o para trás das costas e continua a correr por entre os pinheiros magistrais.

O barulho dos passos apressados, dos ramos mastigados, dos animais perturbados com aquela presença mistura-se com o grito melodioso [sobre-humano] do vento, ferindo-lhe os ouvidos.

Começa a chover. As pequenas folhas das árvores vingam-se no corpo dele, atirando contra si as gotas daquele começo de tempestade. As suas vestes ficam molhadas, deixando o seu corpo gelado.

É preciso mais do que isso para o parar; fugir do sargaço a que chama vida foi mais forte; conseguir novamente ser humano, ter o dom de sentir dor, ultrapassou as armadilhas que o caminho lhe armou.

Naquele momento, as suas 5 mãos arrepiam-se, fazem-no saber quem ele é. Nada mais lhe atravessa a mente - nada. Apenas marcar aquele momento com a intensidade da loucura.

Pisa as folhas com a determinação e vontade com que devia pisar as suas hesitações, agoniantes. Os céus tornam-lhe difícil abrir os olhos - ou será que apenas o protegem, impedindo-o de ver o seu mundo cruel?

A certa altura, chega o limite. As árvores ficaram para trás, e tudo o que resta é uma ravina cujo fundo é longínquo [da vida].

O céu parece triste - mais escuro e tenso do que o habitual. Não gosta de se ver carregado de amargura, e lança-a de novo para quem a criou.

Em breve, as nuvens irão aparecer novamente mais claras, ou até desvanecer-se; tudo ficará bem.

Os ramos espalhados pelo chão, torturados por quem ali caminhou, apenas deram lugar a outros mais fortes e mais novos.

O cheiro a terra molhada e o chilrear dos pássaros que se confunde no meio de tantos ruídos hipnotizam-no.

Terá de voltar mais tarde. Sobe com dificuldade a colina e, ao fim daquela eternidade, vislumbra novamente a estrada. Felizmente, ninguém roubou o carro. Entra, liga o motor e a chauffage com ar quente virado para si.

Por uma fracção de segundos, lembrou-se do que acabara de acontecer. Resignou-se.

Arrancou lentamente. Ao fim de alguns minutos, deixou-se confundir no meio do tumulto de carros.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Love don't live here anymore

Estás sempre certa, como um Deus perfeito que nunca falha, que não precisa que o protejam.

Estás errada. Deste um passo - mas não percorreste o caminho. Disseste uma palavra - mas não acabaste a frase.

Deixas-me vão de paciência, surdo face às palavras hipócritas que murmuras, mudo de palavras de compreensão. Não consegues ouvir o canto do rio que corre em mim, a indecisão das minhas armas, o prato que se partiu, trémulo.

Sais para um beco escuro, sem saberes quando voltarás a encontrar o teu lar. Por fora todas as casas são iguais - cheias de janelas e portas, com vida para dar e vender. Mas mais nenhuma se irá abrir e deixar-te abusar da sua vontade.

Corre, ou irás encontrar a porta fechada, trancada a sete chaves.

Cega? Com medo de voltares para trás. Tens medo do arrependimento, e guias-te pelo teu mapa - o orgulho que te lança num caminho cada vez mais estreito, pejado de pedras e tempestades.

Continuas como soldado perdido, mas acabas por tropeçar na tua própria mina - aquilo que sentes.

Ninguém te irá procurar. Perdeste-te com quem nada sente por ti, com quem prefere ver-te morta a morrer.

Não penses que estiveste só contra todo o mundo. A culpa foi tua.

Demoraste demasiado tempo. Já não moras aqui.


terça-feira, 3 de novembro de 2009

Turn the page

Não me compreendas.

Não me abraces e digas que percebes aquilo que sinto. Quero ser um livro ilegível, um código indecifrável. Não me quero encontrar.

Ser racional? Nem pensar. Onde pára a paixão humana? Antes o preconceito e o ódio do que a indiferença e a frieza.

E, ao mesmo tempo...esse turbilhão de sensações deixa-me perdido, difuso no meio do ar, sem uma mão segura que me dê conforto. Conforto do qual preciso, quando falho perante os mais fúteis detalhes do jogo.

Deixa-me à deriva no rio, sem ninguém que me salve das águas revoltas. Sei que vou ficar preso no remoinho, mas não me importo. Indefeso, inútil, idiota. Todos dizem o contrário, mas o que percebem eles? Porque ousam pensar que podem ajudar?

Subitamente, borbulha em mim a raiva capaz de cegar a alma, de queimar a mente, de atiçar o meu lado negro. Sinto-me capaz de ofender, de bater, de matar. Não vou deixar que algo mais se atravesse no meu caminho. Mas tudo se começa a dissipar...

Acabo por voltar a mim. Sinto-me imundo. Suspiro. Não me deixarei toldar por esse mau génio, sempre pronto a apoderar-se das minhas fraquezas. Não me irei tornar numa criatura tão desumana.

Irei começar do zero. Começar uma nova sinfonia. Deixar que a luz me faça sentir vivo, trancar o que me fez tropeçar no passado. Parar perante o alaranjado pôr do sol, delineado pelas nuvens, a chamar-me para o horizonte, para o futuro.

Vou virar a página.

domingo, 1 de novembro de 2009

Pumpkins and fun

Saio do armário. Deixo lá trancadas sombras escuras do passado. Trago vestes que me escondem o corpo e a alma.

Parece noite de Halloween. Não sei porquê, não sei como, mas estou na rua. O alcatrão sujo está deserto, e as árvores deixaram já caír as suas folhas no chão, como frutos maduros. Sou o único que divaga pela luz difusa dos candeeiros amarelados e sujos.

Ando sem parar, com a mente em branco, rumo a lado nenhum - rumo ao destino. A luz começa a ficar para trás. As árvores e a vegetação multiplicam-se. As casas tornam-se menos numerosas, e o silêncio é tão sugestivo...

De subito, apercebo-me do que estou a fazer. Enlouqueci. Porquê ser apanhado por uma bruxa? E ao mesmo tempo...porque não ser enfeitiçado por aquela força misteriosa e apetecível? Fugir da dimensão humana, ir mais longe?

Continuo, com o coração a bater mais ruidosamente. Tudo parece ainda mais escuro - e errado. Começo a transpirar, e o cansaço começa a incomodar o meu corpo.

Ouço um barulho no meio do mato - e dou um pulo. Foi só uma cobra. Passo por uma paragem de autocarros. Olho duas vezes, à espera de encontrar algo aterrador. Ainda não. Não paro, com um misto de receio, determinação e vontade no olhar.

Por fim, chego a um beco sem saída. Com a cabeça a rodopiar, pulsação no auge, pouca clareza, começo a pensar que cometi um erro. No entanto, olho em volta e tudo parece parado, quieto. Tudo foi um sonho. Não há mais ninguém vivo ali.

-"Estavas à procura de alguma coisa?"- diz uma voz satisfeita.

Fico petrificado. Viro-me, e à minha frente, o pior dos meus medos - a maior das minhas conquistas. Cabelo preto pela cintura, lábios pretos; nariz perfeito e longas pestanas pretas que por pouco não ofuscam o brilho daqueles olhos verdes, redondos.

Não respondo. Tento dar um passo atrás, mas tropeço numa abóbora e acabo por cair estendido no chão. Bolas! Porque é ela mais poderosa do que eu?

Inclina-se sobre mim, sempre com aquele sorriso insinuante e divertido. E eu tento-me mexer e barafustar...até que a cor daqueles lábios me amaldiçoa. Leva-me por um caminho que não conheço, por uma estrada cheia de rodopios e curvas, por uma gruta desconhecida. Há vários sons pelo meio, qualquer um deles incompreensível.

E quando tudo acaba, sem me aperceber, ela foi-se.
Voa pelo frio gélido da noite, na sua vassoura, pronta a enfeitiçar mais alguma mente mundana.

Esqueçam os doces; prefiro travessuras.