segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Memórias

A sala estava sombria. Só com muita atenção se captavam os vultos da desorganização ou o silêncio da solidão. Apenas uma pequena luz era visível, iluminando aquele cabelo encrespado, debruçado sobre papéis por rabiscar.

Oh, tanto trabalho por fazer, tanto trabalho importante para terminar. E ele por um fio, com a concentração a escapar pelos olhares exasperados que caíam sobre os ponteiros horários.

Não faltava muito para que a luz se apagasse, perdendo aquele amarelo difuso. No entanto, o cadeirão em pele - coçado e frio - continuava imóvel, sem magoar o frágil verniz do soalho.

Muito longe dali, sons misturavam-se e aterravam num sítio que aquele rosto cansado não pretendia visitar. A aterragem não foi nada suave, no meio dos ramos de indiferença e desprezo. Tentou sacudi-los, sem qualquer sucesso.

Não era apenas uma sensação de dejá-vu, era aquele boomerang que o perseguia, mesmo quando pensava já o ter perdido. Eram aqueles olhos vazios, aos quais jurou nunca mais ceder.

Porque desejava tanta gente poder ser invisível, quando ele o era e tudo o que ganhava com isso eram lágrimas? De que vale olhar quando não se consegue ver? Tudo o que ele queria era que o encontrassem. Desejava fugir deste mundo preso em si próprio, preso pela face negra de quem nele habita.

Subitamente, algo o enviou de volta para aquela divisão - um ruído abafado, vindo do quintal. Olhou por momentos, desconfiado, tentando aperceber-se de algo errado. Nada. Talvez fosse impressão sua.

Levantou-se, fazendo um esforço por se manter de pé naquela melancolia desiquilibrada. Caminhou pelo corredor, em busca do conforto quente da cama - conforto que não podia encontrar em ninguém. Olhou pela janela, a caminho do quarto, preocupado com o ruído que ouvira. A casa era demasiado vistosa para passar despercebida, mesmo de noite. E se fosse assaltado?

Aquela preocupação foi a gota de água. Aquilo em que pensava esfumou-se e o chão aproximou-se em círculos, como uma espiral. Caiu com alguma violência sobre o tapete de arraiolos. Não desmaiara, mas estava fraco, sem forças.

Não conseguia sentir nada além de uma dor aguda no peito, que ia aumentando gradualmente. Já não tinha fôlego para aguentar nem força para lutar.

Todavia, algo se sobrepôs ao seu desalento. Algo se aproximava, algo que não podia esperar, nunca. A porta rangeu, deslocando-se lentamente e deixando passar o ruído dos passos preocupados. Um vulto aproximou-se, apressado, ao deparar-se com aquela situação. Ele fechou os olhos e tentou esboçar um sorriso.

Estava tão errado...

domingo, 10 de janeiro de 2010

Manhã psicadélica

“Vai ser hoje”, pensas animado. Lutas energicamente contra os lençóis da cama e, quando finamente os vences, corres para a janela na esperança de que ela te deixe finalmente tocar os segredos do mundo. Procuras com o olhar bem aberto, mas será o suficiente?

Tudo se desvanece nessa fracção de segundo. Não há mais nada, além da brisa que te acaricia a face e o sol que faz brilhar a rua, embora não os consigas sentir. Não, não foram as nuvens que te impediram de ver o que esperavas.

Até quando vais esperar que alguma divindade o faça por ti? Não percebes que, apesar do baú do tesouro estar trancado, és o dono da sua chave? De que adianta esperares pela perfeição se ainda não sentiste o que é falhar?

Precisas de cometer um novo erro, para então deixares de navegar nesse mar sem água, tela sem cor. Precisas de a procurar de novo, para acalmar por instantes esse ímpeto cego que te controla.

Perigosa, excitante, obscena. É por isso que não lhe consegues resistir. Porque te faz esquecer aquilo que és e tudo aquilo que nunca foste. Tudo aquilo que fizeste e tudo aquilo que nunca pudeste fazer.

Deixas-te levar nessa viagem alucinante, viagem que nunca conseguirias fazer acordado. Mal sabes que as cores se perdem amanhã.