sábado, 16 de outubro de 2010

Cacofonia escrita

Cerro os dentes outra vez. Voltou aquele zumbido agonizante, aquela tortura mental em forma de voz estridente cor de rosa.

Tinha de ser cor de rosa. Odeio cor de rosa. Não podia ser preta, como a roupa dos góticos? Como as noites de desespero? Como as luzes que não me encontram?

Assim a dor não voltava - era contínua. O sangue iria jorrar muito lentamente dos pulsos cortados ; não de forma suficientemente lenta, ainda assim, para que a esperança o pudesse estancar.

E porque me segue em qualquer altura do ano? Não podia aparecer só no Outono e no Inverno? O vento gélido basta por si só para amedrontar qualquer vestígio de vitalidade, qualquer peito de flor inconsciente sem agasalho...

O gelo nem precisa de explicação em relação aos seus efeitos. Era bom se também pudesse congelar os sonhos por tempo indeterminado, de forma a que os recuperássemos intactos um dia, para os podermos cumprir e entregar as nossas cordas (cordas de marioneta) ao criador.

Mas nem isso nos dão. Nem os palermas dos sonhos se mantêm. Para quê lutar hoje pelo preto se amanhã serei a voz cor de rosa e estridente que tanto odeio?

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Guarda-chuva



Tenho um guarda-chuva. Desses baratos, dos chineses, com as varetas tortas e o tecido furado.

Foi tudo o que me deram para me proteger das tempestades. Dos trovões que me perfuram o peito e deixam aquela sensação estranha de vazio, de revolta.

Um simples guarda chuva que abana, à beira do colapso, à menor insinuação do vento.

Os remendos não servem de nada. A cada dia que passa, enferrujam as varas, frágeis como paus secos; aparecem novos buracos no tecido.

O meu guarda chuva é mágico. Deixa entrar a chuva, mas não deixa que o sol ilumine a minha face pálida. O meu guarda chuva é tão grande que não deixa que ninguém caminhe ao meu lado, ao longo dos passeios intermináveis. O meu guarda-chuva é a minha única companhia.

E se eu não precisar dele para nada? E se eu precisar de ficar ensopado até aos ossos?

Odeio-o. Mas é tão difícil dizer adeus ao frágil guarda-chuva dos chineses...

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Obstáculo



Empurra-me a força da aragem
Atira-me areia para a vista
Que impede a minha passagem
Por mais que eu insista

Não deixa que me perca
Que siga a fragância do perigo
Meu único e fiel abrigo!

Faz de mim duna de areia
Fragmentos de uma vida
Que breve serão arrastados
Por água de maré cheia!

Não consigo estender o braço
Para me salvares do cansaço
Das viagens nos escombros
Das saudades do teu regaço

Será que chegou o adeus?

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Sofá dos sonhos




Rodeiam-me paredes de cansaço, sujas e riscadas do tempo que por elas passou. 10 anos, 10 longos anos que passaram rápido demais. O ar denso parece arrastar as tristezas aprisionadas na tinta branca envelhecida.

O sofá puxa-me para si, com a força de milhões de braços de ferro, como sempre soube fazer. Sabe melhor que ninguém que tudo o que quero é deixar-me voar baixinho, aos comandos do líquido brilhante e escuro que brota irregularmente da caneta. Apenas quero imaginar-me no meio de nuvens redondas, mais genuínas e bonitas do que alguma vez foi a massa cinzenta que polui os céus desta cidade.

Mas a minha fiel companheira de viagem começa a ficar gasta. A única que me pôde manter acordado, ainda que adormecido. A única que me pôde mostrar a luz, embora efémera -maldita maldição! Não a caneta, apenas a minha alma desobediente, que sempre me levou para becos distantes, perigosos, perfeitos na sua solidão.

À medida que a tinta traça curvas determinadas e rectas de rabiscos, a ilusão vai desaparecendo. Lentamente, trazendo a dor de um coma profundo.

Nunca acreditei que a minha vida passava pelos teus lábios secos e finos. Não quis crer que o meu mundo se reflectia nos teus olhos semi-cerrados. Evitei o abraço da tua pele vulgar, dos teus cabelos revoltos. Perdi desesperadamente a rotina de te ter, o conforto do meu espírito, outrora quente e acolhedor.

Deixei-me iludir pela esferográfica. Preferi perder-me na perfeição do imaginário.

10 minutos. Uma luz forte ilumina a minha face, por trás do sofá. Afinal a massa cinzenta sempre viveu somente em mim. Sempre escondeu o verdadeiro sol, a verdadeira razão destes passos que maquinalmente vou seguindo. Atraiçoou-me: levou-me para um círculo vicioso, sem saída possível. Uma estrada que me obriga a voltar regularmente, fazendo-me sair de cada viagem cada vez mais fraco.

10 segundos. Agora é tarde. O que mais dizer? Em breve vou ter-te a meu lado. Não por um bocadinho, mas para sempre. Não em sonhos, mas na morte. Sinto a minha alma a partir, mas não como sempre fez. Desta feita é diferente.

Que sofá tão confortável.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Fases



No que me queres tornar, se o meu eu assim se esfuma - como vaga e doce espuma?
Porquê o mesmo erro, se o tornado há-de sempre voltar para destruír a minha paz temporária?

Porque o atiças e o tornas cada vez mais poderoso? Porque pões à prova as telhas gastas da minha casa?

Não seria o teu papel proteger-me, como uma andorinha defende o seu ninho religiosamente? Não me devias aconchegar o ego em vez de fazeres de mim um rato indefeso, perdido num esgoto sombrio?

Que utopia, que sonho tão maravilhoso que até hoje sonhei. Até hoje. Até quando vais repetir o vício - tornar o pesadelo em sonho efémero? Até quando me vou deixar iludir pelo medo que não quero sentir?

domingo, 1 de agosto de 2010

Distância



Perguntas-me o que é a distância
São os metros, são os passos
A que estou dos teus abraços!

É a ânsia de conhecer
O final da história a meio
É o medo de te perder,
Ilusão que até mim veio!

São os passeios junto ao rio
Que me acalmam e preenchem
Eterno em mim vazio!

E as dúvidas que abordam
A minha alma inquieta
Sempre que se repete o ciclo
E partes para parte incerta!

São os vinte e três segundos
Em que da tua luz me despeço.

São os becos nos quais tropeço!

Mas sei que o teu regresso
É mais do que vão desejo
Anseio que sonho e almejo
Prova que vês em mim
Tanto quanto em ti vejo!

Assim, aguento as águas
Que me trazem nas ondas rebeldes
Sonhos, saudades e mágoas!

sábado, 24 de julho de 2010

Falta



Casa sem esperança
Para gente que fecha as janelas
À alma da tua lembrança

Luar sinistro e escuro
Para quem não se decidiu
Entre o sofrimento de ser
E a vida por trás do escudo!

Para quem, insano, arriscou
Ficar com o presente vazio
Sem a glória que antes sonhou

Avenida do centro deserta
Em plena luz do dia
Cheia de gente incerta
Em invisível correria

Café sem mexericos
Jornal, bilhar ou matrecos
Objectos desconhecidos

Não te importa a falta
Do que nunca conheceste
A chama que em nós exalta!

Mentes com o sorriso amarelo
Que esconde o óbvio engano
De não querer aquilo que é belo
Por considerá-lo profano

Preferes não viver a loucura
De ver em mim o momento
Da tua doença a cura!

Do sinónimo de dor
Foges, medrosa existência
Da tua perigosa demência
Vazio deserto de amor

domingo, 20 de junho de 2010

Passado

Havia uma avenida
Banhada pela correria
Do sol, não das gentes
Nem de um sopro de alegria

Havia uma esplanada
De conversas indiscretas
Bebericavam ali segredos
Boatos, cusquices incertas

Havia um jardim sossegado
De sombras frescas em paz
Amores cínicos se confundiam
Nas árvores e arbustos, por trás

Promessas vãs de esperança
No tempo que não iria embora
No futuro mudaria a dança
Para uma de saudade que chora

Histórias de um sítio vazio
Vazio parecido com nada
Perdido para quem é demais
Achado pela manada

Deu-me o tempo o que preciso
Para perseguir a névoa dourada
Vaga, que se aproxima num riso
Minha paixão e tormenta amada

XX-YY



Sempre soube, sempre vi
Que tomada foi a loucura
Tudo o que por ti senti
Turbilhão que em mim perdura

Desde aquele bar intimista
Olhares cruzados letais
Sentimento alarmista
De géneros semelhantes, iguais

Atracção abominável
Diz o povo preconceituoso
De ignorância admirável
De palavreado cavernoso

As mãos entrelaçadas,
Os lábios unidos,
As maldições que foram rogadas…

O toque da tua pele,
Pele como qualquer ser
O perfume, odor a mel
Já não posso sem ele viver!

Sucumbam, deixem-me ser,
Massas intolerantes e dementes
Que não me sei entregar
A elas, tão atraentes
Ninfas perturbadoras e belas

Hope

Não sei há quantos dias
Não sei há quantos luares
Trouxeram aquelas maresias
Meu corpo para estes vagares

Turvas as águas, outrora
Sujas de sangue e lama
Anos antes da aurora
Me deixaram tempos de infâmia

Feitiços de bruxas lendárias
Lacunas de um ser imperfeito
Submerso em dores imaginárias
Perdido no seu próprio leito

Tardou a onda de espuma
Que me traria ansioso alento
Adormecida ficou, na bruma
À espreita daquele momento

Chegou, por fim, sem aviso
Quem vem libertar este nó
Que faz de mim tão narciso
Que me sufoca e me deixa só

Só esse possui a chave
Que o abre, baú velho e baço
Só esse comanda a nave
Na qual iremos para o espaço

Enfim no meio das estrelas
Mais que metade me tenho
Névoas escuras, porquê vê-las?
Ficaram onde me estranho

Esfumam-se, vagas, distantes
Como páginas de diário antigo
Perdem-se no passado, latejantes
Fragmentos de tão vil inimigo

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Quem?

Quem eu sou?
Não me encontro, não conheço
Para onde olho, para onde vou
Não sei porquê, porque mereço
Este olhar que a mim fitou

Quem tu vês?
Um riacho turvo e fraco
Como a palidez da minha tez
Amor meu feito num caco
O que foi, o que o fez?

Quem me agarra?
Se ousa chegar perto
E não acha o que contava
Não é justo, não é certo
Por isso me refugiava

Perdido nas malhas dos céus
Sombrio nas luzes difusas
À espera, como os outros réus
Das suas penas obtusas

Não sei se deles, não sei se minha
A culpa desta vida perdida
Desde que nasci, decerto tinha
A minha fatal sentença lida

sábado, 24 de abril de 2010

Cortina

Fechas-te num quarto escuro
Ainda que de branco pintado
Vais cimentando esse muro,
Muro que me deixa desorientado

Não há preces resistentes
Ao desalento da tua alma
Que vive de visões dementes
De onde há muito fugiu a calma

Traças mais um dia errante
No leito de lençóis de veludo
Possa um deles ser amante
De todo o perigo agora desnudo

Lembras-te daquela hora?
Aquela que demora,
Aquela que chora,
Aquela que nunca vai embora
Não deixas que se liberte
E se dissipe como fumo
Permites que te aperte
Que apague o teu rumo

Essa cortina cerrada
Que todo o brilho retém
Permanecerá fechada
Puxada por ninguém

Quem o podia fazer
Desconhece tamanha fortuna
Julga-se fragmentada duna
Perdido do seu poder

sábado, 20 de março de 2010

Pecado

Não, as estrelas não me vão conceder mais tempo. Sussurram entre si, clamando que transpus alguma linha invisível, traçada na delicadeza indefinida das nuvens ou das golfadas de fumo.

Paro de respirar. Para quê voltar a saciar-me na impureza desta fragância mortal? A ânsia de chegar ao arrepio eterno perdeu-se; a ilusão do que é imediato também cessou, para nunca mais voltar. Findou o meu lugar aqui, mas não sei como partir.

As voltas frenéticas nesta esfera perduram e irão perdurar. Não é fácil quebrar os alicerces que aqui me prendem, mas também não me acariciam ventos clarividentes, ventos que me tragam o futuro.

Gostava tanto de te levar comigo. Queria tanto que pudesses ver para além desta máscara hipócrita que ostento. Tanto como a lua quer a escuridão ou as nuvens querem o céu.

É impossível, estes dois mundos nunca se irão fundir. Esta é a tua benção, a minha maldição.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Memórias

A sala estava sombria. Só com muita atenção se captavam os vultos da desorganização ou o silêncio da solidão. Apenas uma pequena luz era visível, iluminando aquele cabelo encrespado, debruçado sobre papéis por rabiscar.

Oh, tanto trabalho por fazer, tanto trabalho importante para terminar. E ele por um fio, com a concentração a escapar pelos olhares exasperados que caíam sobre os ponteiros horários.

Não faltava muito para que a luz se apagasse, perdendo aquele amarelo difuso. No entanto, o cadeirão em pele - coçado e frio - continuava imóvel, sem magoar o frágil verniz do soalho.

Muito longe dali, sons misturavam-se e aterravam num sítio que aquele rosto cansado não pretendia visitar. A aterragem não foi nada suave, no meio dos ramos de indiferença e desprezo. Tentou sacudi-los, sem qualquer sucesso.

Não era apenas uma sensação de dejá-vu, era aquele boomerang que o perseguia, mesmo quando pensava já o ter perdido. Eram aqueles olhos vazios, aos quais jurou nunca mais ceder.

Porque desejava tanta gente poder ser invisível, quando ele o era e tudo o que ganhava com isso eram lágrimas? De que vale olhar quando não se consegue ver? Tudo o que ele queria era que o encontrassem. Desejava fugir deste mundo preso em si próprio, preso pela face negra de quem nele habita.

Subitamente, algo o enviou de volta para aquela divisão - um ruído abafado, vindo do quintal. Olhou por momentos, desconfiado, tentando aperceber-se de algo errado. Nada. Talvez fosse impressão sua.

Levantou-se, fazendo um esforço por se manter de pé naquela melancolia desiquilibrada. Caminhou pelo corredor, em busca do conforto quente da cama - conforto que não podia encontrar em ninguém. Olhou pela janela, a caminho do quarto, preocupado com o ruído que ouvira. A casa era demasiado vistosa para passar despercebida, mesmo de noite. E se fosse assaltado?

Aquela preocupação foi a gota de água. Aquilo em que pensava esfumou-se e o chão aproximou-se em círculos, como uma espiral. Caiu com alguma violência sobre o tapete de arraiolos. Não desmaiara, mas estava fraco, sem forças.

Não conseguia sentir nada além de uma dor aguda no peito, que ia aumentando gradualmente. Já não tinha fôlego para aguentar nem força para lutar.

Todavia, algo se sobrepôs ao seu desalento. Algo se aproximava, algo que não podia esperar, nunca. A porta rangeu, deslocando-se lentamente e deixando passar o ruído dos passos preocupados. Um vulto aproximou-se, apressado, ao deparar-se com aquela situação. Ele fechou os olhos e tentou esboçar um sorriso.

Estava tão errado...

domingo, 10 de janeiro de 2010

Manhã psicadélica

“Vai ser hoje”, pensas animado. Lutas energicamente contra os lençóis da cama e, quando finamente os vences, corres para a janela na esperança de que ela te deixe finalmente tocar os segredos do mundo. Procuras com o olhar bem aberto, mas será o suficiente?

Tudo se desvanece nessa fracção de segundo. Não há mais nada, além da brisa que te acaricia a face e o sol que faz brilhar a rua, embora não os consigas sentir. Não, não foram as nuvens que te impediram de ver o que esperavas.

Até quando vais esperar que alguma divindade o faça por ti? Não percebes que, apesar do baú do tesouro estar trancado, és o dono da sua chave? De que adianta esperares pela perfeição se ainda não sentiste o que é falhar?

Precisas de cometer um novo erro, para então deixares de navegar nesse mar sem água, tela sem cor. Precisas de a procurar de novo, para acalmar por instantes esse ímpeto cego que te controla.

Perigosa, excitante, obscena. É por isso que não lhe consegues resistir. Porque te faz esquecer aquilo que és e tudo aquilo que nunca foste. Tudo aquilo que fizeste e tudo aquilo que nunca pudeste fazer.

Deixas-te levar nessa viagem alucinante, viagem que nunca conseguirias fazer acordado. Mal sabes que as cores se perdem amanhã.