domingo, 28 de agosto de 2011

As folhas e o vento

Aqui dentro está quente, acolhedor, confortável, como sempre. Lá fora as folhas caiem banalmente, como sempre fizeram, aos poucos consumando a calvície das árvores e a incontinência das nuvens.

Suspiro. Só queria companhia, para não cair sozinho como as folhas amarelo-fora-de-prazo das árvores. Só queria viver o fácil e banal cliché de andar à chuva de mãos dadas com a minha pseudo alma gémea. Pseudo. Isso não existe.

Mas existem tantas folhas, tantas potenciais folhas...
Apenas o vento as pode fazer roçar em mim na queda, deixar os seus cadernos caírem ao chão na esquina do Outono e trazer para a mesa duas chávenas de café e de miragem.

O vento está lá fora e eu estou cá dentro, longe do mundo das probabilidades. Por ora desisti de me tornar escravo desse mundo, dessa corrente de ar pela qual já esperei, impotente.

Agora vejo as folhas viverem, rodopiarem como marionetas do destino cruel. O destino é pai do vento e ensinou-lhe todos os seus truques. Um dia, sei que não vou resistir, sei que me tocará á campainha. Sei que terei de abandonar o "aqui" e tentar outra vez a minha sorte.

Playground love


As mãos tremem com o medo de te ver - não, com medo que me vejas! Os corredores polifónicos parecem mergulhados num lago de indiferença, para ecoar apenas um som. Para ecoar um gesto, um olhar.

O jantar deixa de fazer sentido sem estares ao lado. A colher passeia, girando nos mesmos sítios, com a cadência dos suspiros e da memória de duração infinita que passa no meu ecrã privado.

Corro como se o fogo me pudesse alcançar os pés ou como se o frio me pudesse congelar a alma. Beijo com a violência de quem ama mais do que a vida pode dar, para a seguir fugir com medo do quão longe fui.

Os pés sintonizam-se com os teus, suavemente polindo o chão de madeira, enquanto a tensão da tua cabeça no meu ombro dura pela noite fora e leva-nos para outro chão.

"You're my playground love"



sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Túnel

Tudo o que eu menos queria era ver-te outra vez. Mas apareceste. Pelo brilho alternado dos carrinhos de choque, suspensos longe da gravilha do solo, vi novamente os teus cabelos, passado tanto tempo como da última vez que a água inundou o deserto. Não eram cabelos reais, de seda, pintados no cabeleireiro do bairro; não. Era um holograma habilmente realizado pelas luzes festivas. Vamos fingir que não apareceram pelo tormento do “ter saudades”, pela falta do oxigénio vicioso que me davas quando baixavas as cuecas.

Não te menti. Se no início queria o perfume dos teus cabelos caros ou o segredo baço dos teus olhos vidrados, rapidamente o perfume fugiu e o segredo passou a ser monotonia. A razão do nosso ser passou apenas à mundana travessia do túnel cor de pele, às bocas retorcidas dos gemidos e ao egoísmo dos olhos fechados para o mundo.

Porque apareceram os teus cabelos tanto tempo depois, do nada do céu? Porque quero tudo isso outra vez. Não necessariamente os teus cabelos ou o mesmo túnel, talvez outros, sei que não alimentas esperanças nem eu o faço. Que outro exótico perfume me invada. Estou novamente pronto para isso. Para o túnel todos estamos. Sempre.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Um café parte 2

*

Mentira. O estômago borbulhava, insaciado, talvez também pela conversa despertada em torno de uma estúpida torrada – conversa que lhe pareceu totalmente despropositada, não estivessem os seus cavaleiros da mente ao serviço de outras necessidades.

Era um daqueles dias em que, como nuvem que aparece do nada e teima em desaparecer, fazendo-o ao fim de várias horas de precipitação, as ideias assombravam-no e obrigavam o cérebro a digeri-las, a decompô-las, para que assim a tempestade (qual brain…storming) terminasse de forma pacífica, dentro do possível. Ainda nenhuma dessas sessões havia resultado de forma minimamente duradoura e as nuvens voltavam sempre, ao fim de dias de paz e sossego.

Uma vontade estúpida, irracional, ditou que procurasse aquelas fotos, aqueles nomes e cenários que continuavam a marcar-lhe os dias. Mais do que uma fiel cópia dos acontecimentos, ficaram as memórias triviais que lhe relembravam a solidão; as marcas de guerra, as dúvidas – quando viria aquilo tudo a desvanecer-se de vez?
Tenho uma teoria. Vivemos para acumular cicatrizes, para montar à toa peças de um puzzle cuja imagem final desconhecemos. Naturalmente, apesar dos nossos melhores esforços, de forma alguma elas ficam bem encaixadas. Mesmo quando tentamos compor aqui e ali, há sempre outra peça, subjugada, menosprezada, que sai do sítio ou parte para sempre – e assim partimos nós, um dia, numa escala maior.

Quando olhamos para o gelo plácido do passado, torna-se mais fácil analisar as peças que ficaram por encaixar, o puzzle para sempre incompleto. O sol daqueles dias avizinha-se longínquo, na altura mais importante do que essa rectidão e perfeição do puzzle. Afinal de contas, seremos feitos para beijar a perfeição ou para apertar o calor terreno da vida, aquele que dita a incompletude das peças e o retrato final ambíguo?

E se o puzzle for perfeito, será a imagem nele representada, aquela que as pessoas vêem, igual à que realmente somos? Duvido. A perfeição exige o sacrifício do eu.

*

O Pedro acabou por pedir uma tosta. O seu estômago enviara um ultimato ao cérebro distante, alertando para a sua pouca sensibilidade para dramas pessoais. Mais um pedaço de carvão fazia o seu percurso sinuoso, por entre cadeiras, antes de chegar à mesa.

Um café parte I

Era um daqueles cafés completamente simplórios, perdidos no tempo. Tornara-se o paradeiro habitual do grupo não sei precisar há quanto tempo – meses, vários, cuja noção se foi esfumando em cada dia de passadas sofridas, de um nascer e pôr do sol completamente coloquial e vazio. Abrigado pelas cinzas do tabaco da plebe e pelo fumo nas mesas encardido, mergulhado nas conversas humildes dos moradores da zona - aquelas das quais vive o mundo, mas das quais todos chacotam mordazmente - assim sobrevivera às duras aguilhoadas do tempo. Não havia nenhum sítio mais à mão e assim se tornou tacitamente o centro das conversas, das fugas às casas monótonas.

Estavam lá os 4 do costume. Um rapaz de tez morena e cabelo liso, preto, de franja caída sobre os olhos cor de turquesa, começava a ingerir avidamente a torrada que pedira uns minutos antes, um pouco queimada, e o galão que, do balcão até à mesa redonda de ferro sustentada no chão de mosaicos ao xadrez preto e cinza, entornara uma quantidade considerável.

- “Interessante, em vez de manteiga barraram-na com carvão.” – troçou Rita, com o seu sarcasmo quase tão marcado como as borbulhas presentes na cara. Uma pena, de facto, não fosse ela a perfeita representação do estereótipo da loira de olhos azuis.
- “É, mas parece que ao menos aqui alguém se alimenta.” – zombou Ricardo, com um certo ar sério à mistura que indicava algum fundo de verdade na resposta. E tinha razão, toda a gente sabia da ligeira obsessão de Rita em relação ao seu corpo, construída durante a adolescência e ainda presente, agora que entrava na sua segunda década de existência. Nada de demasiado grave, apenas mais uma coisa para atormentar a vida já de si bastante pacata de um perfeito ió-ió emocional.

- “Vá, não sejas assim.” – principiou a sensatez em pessoa, que era Patrícia – “A esta hora é normal que as coisas já não saiam tão bem, além disso eles estão mais habituados a servir cervejas e amendoins. Ninguém te manda ser uma carta fora do baralho” – sorriu, ligeiramente na galhofa.

- “E tu, não pedes nada, Pedro?” – perguntou Rita, , entretanto propositadamente no campo de visão deste e provocando imediatamente o virar do pescoço dos outros 2 na sua direcção. Pedro não dissera nada de especial desde que entrara no café. Quase parecia estar a acompanhar a conversa como um dedo que acompanha as gotas que escorrem nas janelas, quando chova, sem lhe chegar a tocar ou a compreendê-la devidamente.

- “Hmm, desculpa?” – principiou Pedro, surpreendido com a tirada.

-“Se não vais comer qualquer coisa!” – insistiu a loira.

-“Não, não tenho fome…e também não quero gastar dinheiro.” – retorquiu com um nível de excitação em tudo semelhante ao proporcionado por uma corrida de caracóis. Afinal de contas, é habitual as coisas começarem assim, com falta de apetite.