domingo, 27 de fevereiro de 2011

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Porque a praça dos sentidos e a revista do passado há-de sempre trazer de volta o que de pior há em nós, como um beco sem saída, cujos limites aprisionam a nossa fraqueza humana de querer mais e não o poder atingir.

Porque a morte não é mais do que um remendo, um mal menor para essa falha incrível que faz de nós tão pouco como a vida e tanto como isto que escrevo.

Mas e se houver uma pequena luz? Fingimos vê-la, como todos os outros. Fingimos que o nosso amo não nos tem como escravos, fingimos não haver mais nenhum caminho. E não há mesmo...

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Infinito

O meu único vício é não ter vício nenhum. A minha única existência é, paradoxalmente, a minha morte, lenta e invisível para os outros. Lenta porque não tenho como evitar o tempo que corre em direcção a mim, invisível porque os olhos só vêem as cicatrizes do corpo, não o suplício delirante e agudo da alma.

Caminhar acompanhado é a mesma coisa que caminhar sozinho. Beijar os teus lábios carnudos é a mesma coisa que ouvir sendo surdo, caminhar sem pernas. Ainda se tivesse um rumo definido...poderia viajar, mesmo sem elas.

A minha única oração é o silêncio do desespero, o fim da linha e a saída eminente do comboio que devia seguir para o infinito.

Maldito infinito. É para ele que as pessoas vivem, mesmo quando dizem aceitar a morte - porque mentem a si próprias. É nele que as pessoas se encontram, quando julgam que se irão perder. É nele que deixam de ser criaturas imperfeitas e incompletas - antes o nada do que o inacabado.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Ritual

Estou doente. Já não consigo ver com clareza as pétalas que vão lançando à minha passagem, arrancadas de forma condenável para me servir, pés ingratos que se esfregam ao longo da calçada do tempo.

Pior do que isso: já só vejo as facas ferrugentas que me apontam. Raios, ferrugentas? Consegui que nutrissem assim tanto ódio por mim - durante tanto tempo? Não, nunca fui importante a esse ponto.

Então, como explicar isto? Não é um mero acaso: todas as noites, sinto a ferida a ser aberta lentamente, com laivos de malvadez ritual. Todas as noites, sinto o sangue a verter - ao princípio com gritos de aguda desorientação, agora resignadamente silenciosos - já não vale a pena.

Abandona-me em cada vez maior quantidade...e enquanto não mergulho nos domínios privados do repouso. (afinal de contas, se acontecesse enquanto durmo, sinal seria de que o meu templo sagrado havia sido profanado e não se iria esfumar o corpo, antes a mente).

É tudo uma questão de tempo, sempre o soube. Talvez até já tenha aguentado mais do que merecia. Devaneios filosóficos não vão fazer nada por mim agora. Céus, se tivesse uma mão estendida para mim...mas não, não poderia ousar dividir com ela a dor, ainda assim. Que as luzes se apaguem - mas só para mim.

Será? Resta a dúvida - até que ponto irá o egoísmo?

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Texto expositivo...

Lembro-me como se fosse hoje. Comparando ao futuro longínquo da velhice caduca, de bengala imponente de madeira e crescente desejo de auto-aniquilação, se calhar foi mesmo hoje.

Tudo começou com um filme que ambos quisemos partilhar. Sabíamos que, no fim, o feitiço seria quebrado e aqueles breves segundos em que nos cruzámos seriam levados pela tempestade caótica que às vezes assola esta terra.

Não fomos forçados pelo ostensivo relógio do portátil, nem tão pouco pelos tiros sangrentos das imagens que dançavam para os nossos olhos. Tudo se desenhou por pura inspiração e capricho divino, em tudo similar à fracção de segundo de génio do artista, quando sabe exactamente que rumo dar à sua obra.

Um sopro que só eles entenderam levou os nossos dedos ingénuos a aproximarem-se lentamente, saboreando o toque efémero de tão pequena porção de alma; a razão congelou por momentos - oh, se assim tivesse ficado para sempre!

Enquanto isso, os nossos corpos descreviam movimentos de medo e de atrevimento, num impasse que não conseguíamos resolver. Fomos marionetas dos sentidos, controlados por cordas de desejo e calor. Os nossos lábios procuraram-se no escuro, sem saberem muito bem porquê. Encaixaram de forma humanamente perfeita e, naquele momento, tudo fez sentido - até a escuridão.

Os disparos sangrentos deixaram de se ouvir. Deram lugar ao ruído maquinal da ilusão e à procura de um novo significado ainda mais profundo, de um ponto de chegada ainda mais longínquo, envolvido pela protecção morna da manta do sofá.



(desta vez, a única relação da música com o texto é a pureza e beleza, para além da forma lenta como vai crescendo...no tempo e em nós)

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Forget

A vida não é tão difícil de explicar como eu pensava. Sou uma mera linha recta, imutável e inabalável. A maior parte das outras linhas sabe o risco que corre, nunca se aproximando de tão anormal excepção.

Há, no entanto, uma ou outra que arrisca tocar com todas as suas forças esta linha. Todas elas vão sendo impelidas para bem longe, nunca chegando a fundir-se uma vez que seja comigo.

Porém, há uma recente excepção que levanta questões e abala alicerces. Talvez esta linha já não esteja tão recta como eu julgava - se calhar isso não é uma coisa má. Se calhar, a pouco e pouco, vou absorvendo, num processo simbiótico, outra linha em mim. Se calhar, estou também a dar uma parte de mim, parte essa que nunca mais vou conhecer ou afagar com a ponta dos meus dedos.

O processo dói. Às vezes, dá vontade de acabar directamente com a minha linha - e, indirectamente, com a tua. Mas sempre gostei de causar o menor sofrimento possível, visto que o mal é meu. Vou deixar que a tua linha se desembarace pacificamente da minha e siga o seu caminho nesta folha de papel.

"They'll give us something,
They'll give us so much to forget"