Inspira forte. O fumo entra em formato de cornucópia pelas narinas feridas do frio. O cérebro engasga-se com a nuvem densa que atordoa também os sentidos.
O fumo não é físico, visível e de odor palpável; não. É visceral, possui o corpo e atira-o para o desespero. No turbilhão de cinzas está envolto, de forma confusa, o pior de nós. Está o abismo do não ter, do não controlar (por não ver).
O fumo é uma obcessão. É difícil impedir que se imiscua dentro de nós, dado que para tal teríamos de parar de respirar - e de repousar eternamente na valeta, esperando pela degradação em pó.
Assim, o fumo faz parte da condição humana de alguns. Viver é sentir o fumo, umas vezes mais fraco, outras vezes mais opaco e negro, queimando a memória alegre e conservadora do eu e da espécie. Sentir o fumo, arder por dentro e chegar ao cúmulo de deixar as labaredas saír, é o que nos distingue de um calhão inerte.
quarta-feira, 23 de novembro de 2011
domingo, 20 de novembro de 2011
Corpo-fobia
As luzes, difusas e desfalcadas de vida, pouco deixavam ver senão contornos imperceptíveis. Não era mau que assim fosse - às vezes, vaguear sem consciência ocular é muito menos doloroso. O verdadeiro target point não era a essência, mas sim o formato do frasco que a guardava e que a impedia de sair.
Mas um dia saiu. Um dia, o frasco baço quebrou-se, por culpa do relâmpago de luz que sobre ele abateu. A luz trouxe algo de inesperado: um ogre, de um verde cansado, olhos retraídos nas suas grutas de conforto, dentes pontiagudos a proteger o lábio inferior. A baba escorria, as rugas na testa hedionda eram visíveis parcamente, por trás do pouco cabelo oleoso e sujo que se colava.
Não se sabe como não partiu o espelho à sua frente, na sala. Não se sabe que caminho foi o seu para chegar ali, ao dia da confrontação. Feio seria, mas não cego. Voltou-se em pânico - outro espelho. Quanto mais rodava sobre as patas descalças de unhas retorcidas, mais outro, outro e outro. Nenhuma porta de saída que se visse. Eram 1001 ogres num pranto acriançado, ampliados e tornados ainda mais feios. A baba salpicava o chão espelhado, o tecto era também de um vidro claustrofóbico.
O motivo para estar ali sozinho era óbvio - era demasiado deplorável para poder viver com os outros ogres. Com os outros ogres de cabelo oleoso e sujo, de rugas na testa e olhos encovados. De dentes espetados. De tudo o que tinha o ogre triste, só não tinham a consciência da imperfeição. Não foram os outros ogres a trancar-lhe a porta de saída, fora a sua própria mente e a sua visão doente - disformes os olhos, não o corpo.
As luzes apagaram-se novamente (não que alguma vez tivessem estado verdadeiramente acesas, vislumbra-se o corpo mas não a mente). A cama acordou suada, envolvida pelos lençóis arrepiados do pesadelo que acabavam de presenciar.
E se esse pesadelo fosse a eternidade de alguém? Pobre ogre.
Mas um dia saiu. Um dia, o frasco baço quebrou-se, por culpa do relâmpago de luz que sobre ele abateu. A luz trouxe algo de inesperado: um ogre, de um verde cansado, olhos retraídos nas suas grutas de conforto, dentes pontiagudos a proteger o lábio inferior. A baba escorria, as rugas na testa hedionda eram visíveis parcamente, por trás do pouco cabelo oleoso e sujo que se colava.
Não se sabe como não partiu o espelho à sua frente, na sala. Não se sabe que caminho foi o seu para chegar ali, ao dia da confrontação. Feio seria, mas não cego. Voltou-se em pânico - outro espelho. Quanto mais rodava sobre as patas descalças de unhas retorcidas, mais outro, outro e outro. Nenhuma porta de saída que se visse. Eram 1001 ogres num pranto acriançado, ampliados e tornados ainda mais feios. A baba salpicava o chão espelhado, o tecto era também de um vidro claustrofóbico.
O motivo para estar ali sozinho era óbvio - era demasiado deplorável para poder viver com os outros ogres. Com os outros ogres de cabelo oleoso e sujo, de rugas na testa e olhos encovados. De dentes espetados. De tudo o que tinha o ogre triste, só não tinham a consciência da imperfeição. Não foram os outros ogres a trancar-lhe a porta de saída, fora a sua própria mente e a sua visão doente - disformes os olhos, não o corpo.
As luzes apagaram-se novamente (não que alguma vez tivessem estado verdadeiramente acesas, vislumbra-se o corpo mas não a mente). A cama acordou suada, envolvida pelos lençóis arrepiados do pesadelo que acabavam de presenciar.
E se esse pesadelo fosse a eternidade de alguém? Pobre ogre.
quinta-feira, 10 de novembro de 2011
Egoísmo
Há-de sempre chegar o dia. O dia em que as planícies se deixam revolver pelos ventos inseguros, o dia em que o mar trepa de vez o cais outrora lânguido e proveitoso.
No fundo, todos os peões insignificantes deste mundo têm escondida pela roupa bem-cheirosa das regras e costumes sociais a faculdade de incharem como peixe-balão e deixarem a vista turvar-se perante a confiança nas sortes.
Podemos muito bem seguir sem esforço pela faixa apreciável da direita, deixar-mo-nos rolar pelos melhores momentos, até que sem que nada apareça à frente, guinamos subitamente rumo ao acidente. Pergunto-me até que ponto não é esse o nosso modo natural de ser, disfarçado pela convivência ética. Pergunto-me até que ponto valerá a pena nos perdoarmos uns aos outros por algo tão desastroso - mas natural.
Os nossos olhos não são uma força, apenas um indicador de fraqueza - conseguem ver os outros, mas não olhá-los. Fazem de nós irascíveis bestas desconfiadas, crentes convictas apenas do egocentrismo. Disso sim, tenho pena, mas nada mais posso fazer a não ser um inócuo pedido de desculpas e seguir em frente, com mais uns estilhaços a aparecerem no espelho que condensa as frias lágrimas do falhanço.
No fundo, todos os peões insignificantes deste mundo têm escondida pela roupa bem-cheirosa das regras e costumes sociais a faculdade de incharem como peixe-balão e deixarem a vista turvar-se perante a confiança nas sortes.
Podemos muito bem seguir sem esforço pela faixa apreciável da direita, deixar-mo-nos rolar pelos melhores momentos, até que sem que nada apareça à frente, guinamos subitamente rumo ao acidente. Pergunto-me até que ponto não é esse o nosso modo natural de ser, disfarçado pela convivência ética. Pergunto-me até que ponto valerá a pena nos perdoarmos uns aos outros por algo tão desastroso - mas natural.
Os nossos olhos não são uma força, apenas um indicador de fraqueza - conseguem ver os outros, mas não olhá-los. Fazem de nós irascíveis bestas desconfiadas, crentes convictas apenas do egocentrismo. Disso sim, tenho pena, mas nada mais posso fazer a não ser um inócuo pedido de desculpas e seguir em frente, com mais uns estilhaços a aparecerem no espelho que condensa as frias lágrimas do falhanço.
sábado, 22 de outubro de 2011
Águas
Quando a esperança de navegar para longe se via já atolada quanto baste no deserto das horas, eis que uma daquelas tempestades dilúvicas me deixa agarrado sem fôlego ao mastro da embarcação. Toldado pela velocidade das marés, vi a vida à minha frente, por ter deixado de a ver.
Ilusão de óptica em alto mar, será?
Nada me faltava. A corda para limpar o rabo estava lá, a comida enlatada e seca que alimentava o corpo era escassa, mas suficiente - já a alma apresentava-se farta e nutrida por aqueles ventos amenos que deixavam os cabelos de todo o corpo em pé.
Agradeci a ambas as forças da natureza (o ar e a água, leia-se, não o amor e a ilusão) pela refeição soberba, pelo olhar agora vivo e fulgurante, atarefado com a vida em alto mar, onde podia olhar para tudo e não ver, cego, mais do que o horizonte indefinido. Como é bom viver sem perspectivas seguras de futuro, sem precisar sequer delas.
Cedo demais o fiz. Os ventos não mudaram - permaneceram indecisos, vagueantes, desnorteados. Mudou a minha necessidade de mar, de descoberta. No meio das águas voláteis, cada passo calculado é ainda assim um passo em falso. As saudades da terra apareceram. As saudades do refúgio fácil quando o vento me sopra palavras que não quero ouvir, as saudades da liberdade de poder perder-me e, ao voltar a erguer o olhar, saber que os arranha-céus me irão guiar para o meu lar de sempre.
Ilusão de óptica em alto mar, será?
Nada me faltava. A corda para limpar o rabo estava lá, a comida enlatada e seca que alimentava o corpo era escassa, mas suficiente - já a alma apresentava-se farta e nutrida por aqueles ventos amenos que deixavam os cabelos de todo o corpo em pé.
Agradeci a ambas as forças da natureza (o ar e a água, leia-se, não o amor e a ilusão) pela refeição soberba, pelo olhar agora vivo e fulgurante, atarefado com a vida em alto mar, onde podia olhar para tudo e não ver, cego, mais do que o horizonte indefinido. Como é bom viver sem perspectivas seguras de futuro, sem precisar sequer delas.
Cedo demais o fiz. Os ventos não mudaram - permaneceram indecisos, vagueantes, desnorteados. Mudou a minha necessidade de mar, de descoberta. No meio das águas voláteis, cada passo calculado é ainda assim um passo em falso. As saudades da terra apareceram. As saudades do refúgio fácil quando o vento me sopra palavras que não quero ouvir, as saudades da liberdade de poder perder-me e, ao voltar a erguer o olhar, saber que os arranha-céus me irão guiar para o meu lar de sempre.
sexta-feira, 30 de setembro de 2011
To you
Enquanto te vejo a dormir, pergunto-me se será possível. O vento levou consigo os viajantes incómodos, áridos e poeirentos que erodiam o coração. Ao mesmo tempo, como criança que desliza lentamente por trás de nós para nos assustar e corre quando está perto, assim me assolou a essência que teimava em escapar-se pelas minhas mãos soturnas e pouco esperançosas.
Não me resta outra solução que não fitar os teus lábios finos de banda desenhada, os teus olhos de doce lunática, os teus cabelos de revolto castanho, o teu corpo torpe e esguio. Faço-o como se o amanhã os despisse dos adjectivos e os deixasse apenas lábios, olhos, cabelo, ordinários e vulgares. Olho convencido de que a luz não vai nunca voltar a espreitar pela fresta da portada da janela e ranger mais uma vez um sonoro “bom dia”.
Mas vai. Há tanto para fazer lá fora…fora de nós, num mundo sem pausa ou paragem possível. Felizmente, os momentos são efémeros, mas a memória é bastante poderosa. Por causa dela, aqui estou, sozinho e longe, a lembrar-me do quanto te amo.
Não me resta outra solução que não fitar os teus lábios finos de banda desenhada, os teus olhos de doce lunática, os teus cabelos de revolto castanho, o teu corpo torpe e esguio. Faço-o como se o amanhã os despisse dos adjectivos e os deixasse apenas lábios, olhos, cabelo, ordinários e vulgares. Olho convencido de que a luz não vai nunca voltar a espreitar pela fresta da portada da janela e ranger mais uma vez um sonoro “bom dia”.
Mas vai. Há tanto para fazer lá fora…fora de nós, num mundo sem pausa ou paragem possível. Felizmente, os momentos são efémeros, mas a memória é bastante poderosa. Por causa dela, aqui estou, sozinho e longe, a lembrar-me do quanto te amo.
domingo, 28 de agosto de 2011
As folhas e o vento
Aqui dentro está quente, acolhedor, confortável, como sempre. Lá fora as folhas caiem banalmente, como sempre fizeram, aos poucos consumando a calvície das árvores e a incontinência das nuvens.
Suspiro. Só queria companhia, para não cair sozinho como as folhas amarelo-fora-de-prazo das árvores. Só queria viver o fácil e banal cliché de andar à chuva de mãos dadas com a minha pseudo alma gémea. Pseudo. Isso não existe.
Mas existem tantas folhas, tantas potenciais folhas...
Apenas o vento as pode fazer roçar em mim na queda, deixar os seus cadernos caírem ao chão na esquina do Outono e trazer para a mesa duas chávenas de café e de miragem.
O vento está lá fora e eu estou cá dentro, longe do mundo das probabilidades. Por ora desisti de me tornar escravo desse mundo, dessa corrente de ar pela qual já esperei, impotente.
Agora vejo as folhas viverem, rodopiarem como marionetas do destino cruel. O destino é pai do vento e ensinou-lhe todos os seus truques. Um dia, sei que não vou resistir, sei que me tocará á campainha. Sei que terei de abandonar o "aqui" e tentar outra vez a minha sorte.
Suspiro. Só queria companhia, para não cair sozinho como as folhas amarelo-fora-de-prazo das árvores. Só queria viver o fácil e banal cliché de andar à chuva de mãos dadas com a minha pseudo alma gémea. Pseudo. Isso não existe.
Mas existem tantas folhas, tantas potenciais folhas...
Apenas o vento as pode fazer roçar em mim na queda, deixar os seus cadernos caírem ao chão na esquina do Outono e trazer para a mesa duas chávenas de café e de miragem.
O vento está lá fora e eu estou cá dentro, longe do mundo das probabilidades. Por ora desisti de me tornar escravo desse mundo, dessa corrente de ar pela qual já esperei, impotente.
Agora vejo as folhas viverem, rodopiarem como marionetas do destino cruel. O destino é pai do vento e ensinou-lhe todos os seus truques. Um dia, sei que não vou resistir, sei que me tocará á campainha. Sei que terei de abandonar o "aqui" e tentar outra vez a minha sorte.
Playground love
As mãos tremem com o medo de te ver - não, com medo que me vejas! Os corredores polifónicos parecem mergulhados num lago de indiferença, para ecoar apenas um som. Para ecoar um gesto, um olhar.
O jantar deixa de fazer sentido sem estares ao lado. A colher passeia, girando nos mesmos sítios, com a cadência dos suspiros e da memória de duração infinita que passa no meu ecrã privado.
Corro como se o fogo me pudesse alcançar os pés ou como se o frio me pudesse congelar a alma. Beijo com a violência de quem ama mais do que a vida pode dar, para a seguir fugir com medo do quão longe fui.
Os pés sintonizam-se com os teus, suavemente polindo o chão de madeira, enquanto a tensão da tua cabeça no meu ombro dura pela noite fora e leva-nos para outro chão.
"You're my playground love"
sexta-feira, 26 de agosto de 2011
Túnel
Tudo o que eu menos queria era ver-te outra vez. Mas apareceste. Pelo brilho alternado dos carrinhos de choque, suspensos longe da gravilha do solo, vi novamente os teus cabelos, passado tanto tempo como da última vez que a água inundou o deserto. Não eram cabelos reais, de seda, pintados no cabeleireiro do bairro; não. Era um holograma habilmente realizado pelas luzes festivas. Vamos fingir que não apareceram pelo tormento do “ter saudades”, pela falta do oxigénio vicioso que me davas quando baixavas as cuecas.
Não te menti. Se no início queria o perfume dos teus cabelos caros ou o segredo baço dos teus olhos vidrados, rapidamente o perfume fugiu e o segredo passou a ser monotonia. A razão do nosso ser passou apenas à mundana travessia do túnel cor de pele, às bocas retorcidas dos gemidos e ao egoísmo dos olhos fechados para o mundo.
Porque apareceram os teus cabelos tanto tempo depois, do nada do céu? Porque quero tudo isso outra vez. Não necessariamente os teus cabelos ou o mesmo túnel, talvez outros, sei que não alimentas esperanças nem eu o faço. Que outro exótico perfume me invada. Estou novamente pronto para isso. Para o túnel todos estamos. Sempre.
Não te menti. Se no início queria o perfume dos teus cabelos caros ou o segredo baço dos teus olhos vidrados, rapidamente o perfume fugiu e o segredo passou a ser monotonia. A razão do nosso ser passou apenas à mundana travessia do túnel cor de pele, às bocas retorcidas dos gemidos e ao egoísmo dos olhos fechados para o mundo.
Porque apareceram os teus cabelos tanto tempo depois, do nada do céu? Porque quero tudo isso outra vez. Não necessariamente os teus cabelos ou o mesmo túnel, talvez outros, sei que não alimentas esperanças nem eu o faço. Que outro exótico perfume me invada. Estou novamente pronto para isso. Para o túnel todos estamos. Sempre.
segunda-feira, 15 de agosto de 2011
Um café parte 2
*
Mentira. O estômago borbulhava, insaciado, talvez também pela conversa despertada em torno de uma estúpida torrada – conversa que lhe pareceu totalmente despropositada, não estivessem os seus cavaleiros da mente ao serviço de outras necessidades.
Era um daqueles dias em que, como nuvem que aparece do nada e teima em desaparecer, fazendo-o ao fim de várias horas de precipitação, as ideias assombravam-no e obrigavam o cérebro a digeri-las, a decompô-las, para que assim a tempestade (qual brain…storming) terminasse de forma pacífica, dentro do possível. Ainda nenhuma dessas sessões havia resultado de forma minimamente duradoura e as nuvens voltavam sempre, ao fim de dias de paz e sossego.
Uma vontade estúpida, irracional, ditou que procurasse aquelas fotos, aqueles nomes e cenários que continuavam a marcar-lhe os dias. Mais do que uma fiel cópia dos acontecimentos, ficaram as memórias triviais que lhe relembravam a solidão; as marcas de guerra, as dúvidas – quando viria aquilo tudo a desvanecer-se de vez?
Tenho uma teoria. Vivemos para acumular cicatrizes, para montar à toa peças de um puzzle cuja imagem final desconhecemos. Naturalmente, apesar dos nossos melhores esforços, de forma alguma elas ficam bem encaixadas. Mesmo quando tentamos compor aqui e ali, há sempre outra peça, subjugada, menosprezada, que sai do sítio ou parte para sempre – e assim partimos nós, um dia, numa escala maior.
Quando olhamos para o gelo plácido do passado, torna-se mais fácil analisar as peças que ficaram por encaixar, o puzzle para sempre incompleto. O sol daqueles dias avizinha-se longínquo, na altura mais importante do que essa rectidão e perfeição do puzzle. Afinal de contas, seremos feitos para beijar a perfeição ou para apertar o calor terreno da vida, aquele que dita a incompletude das peças e o retrato final ambíguo?
E se o puzzle for perfeito, será a imagem nele representada, aquela que as pessoas vêem, igual à que realmente somos? Duvido. A perfeição exige o sacrifício do eu.
*
O Pedro acabou por pedir uma tosta. O seu estômago enviara um ultimato ao cérebro distante, alertando para a sua pouca sensibilidade para dramas pessoais. Mais um pedaço de carvão fazia o seu percurso sinuoso, por entre cadeiras, antes de chegar à mesa.
Mentira. O estômago borbulhava, insaciado, talvez também pela conversa despertada em torno de uma estúpida torrada – conversa que lhe pareceu totalmente despropositada, não estivessem os seus cavaleiros da mente ao serviço de outras necessidades.
Era um daqueles dias em que, como nuvem que aparece do nada e teima em desaparecer, fazendo-o ao fim de várias horas de precipitação, as ideias assombravam-no e obrigavam o cérebro a digeri-las, a decompô-las, para que assim a tempestade (qual brain…storming) terminasse de forma pacífica, dentro do possível. Ainda nenhuma dessas sessões havia resultado de forma minimamente duradoura e as nuvens voltavam sempre, ao fim de dias de paz e sossego.
Uma vontade estúpida, irracional, ditou que procurasse aquelas fotos, aqueles nomes e cenários que continuavam a marcar-lhe os dias. Mais do que uma fiel cópia dos acontecimentos, ficaram as memórias triviais que lhe relembravam a solidão; as marcas de guerra, as dúvidas – quando viria aquilo tudo a desvanecer-se de vez?
Tenho uma teoria. Vivemos para acumular cicatrizes, para montar à toa peças de um puzzle cuja imagem final desconhecemos. Naturalmente, apesar dos nossos melhores esforços, de forma alguma elas ficam bem encaixadas. Mesmo quando tentamos compor aqui e ali, há sempre outra peça, subjugada, menosprezada, que sai do sítio ou parte para sempre – e assim partimos nós, um dia, numa escala maior.
Quando olhamos para o gelo plácido do passado, torna-se mais fácil analisar as peças que ficaram por encaixar, o puzzle para sempre incompleto. O sol daqueles dias avizinha-se longínquo, na altura mais importante do que essa rectidão e perfeição do puzzle. Afinal de contas, seremos feitos para beijar a perfeição ou para apertar o calor terreno da vida, aquele que dita a incompletude das peças e o retrato final ambíguo?
E se o puzzle for perfeito, será a imagem nele representada, aquela que as pessoas vêem, igual à que realmente somos? Duvido. A perfeição exige o sacrifício do eu.
*
O Pedro acabou por pedir uma tosta. O seu estômago enviara um ultimato ao cérebro distante, alertando para a sua pouca sensibilidade para dramas pessoais. Mais um pedaço de carvão fazia o seu percurso sinuoso, por entre cadeiras, antes de chegar à mesa.
Um café parte I
Era um daqueles cafés completamente simplórios, perdidos no tempo. Tornara-se o paradeiro habitual do grupo não sei precisar há quanto tempo – meses, vários, cuja noção se foi esfumando em cada dia de passadas sofridas, de um nascer e pôr do sol completamente coloquial e vazio. Abrigado pelas cinzas do tabaco da plebe e pelo fumo nas mesas encardido, mergulhado nas conversas humildes dos moradores da zona - aquelas das quais vive o mundo, mas das quais todos chacotam mordazmente - assim sobrevivera às duras aguilhoadas do tempo. Não havia nenhum sítio mais à mão e assim se tornou tacitamente o centro das conversas, das fugas às casas monótonas.
Estavam lá os 4 do costume. Um rapaz de tez morena e cabelo liso, preto, de franja caída sobre os olhos cor de turquesa, começava a ingerir avidamente a torrada que pedira uns minutos antes, um pouco queimada, e o galão que, do balcão até à mesa redonda de ferro sustentada no chão de mosaicos ao xadrez preto e cinza, entornara uma quantidade considerável.
- “Interessante, em vez de manteiga barraram-na com carvão.” – troçou Rita, com o seu sarcasmo quase tão marcado como as borbulhas presentes na cara. Uma pena, de facto, não fosse ela a perfeita representação do estereótipo da loira de olhos azuis.
- “É, mas parece que ao menos aqui alguém se alimenta.” – zombou Ricardo, com um certo ar sério à mistura que indicava algum fundo de verdade na resposta. E tinha razão, toda a gente sabia da ligeira obsessão de Rita em relação ao seu corpo, construída durante a adolescência e ainda presente, agora que entrava na sua segunda década de existência. Nada de demasiado grave, apenas mais uma coisa para atormentar a vida já de si bastante pacata de um perfeito ió-ió emocional.
- “Vá, não sejas assim.” – principiou a sensatez em pessoa, que era Patrícia – “A esta hora é normal que as coisas já não saiam tão bem, além disso eles estão mais habituados a servir cervejas e amendoins. Ninguém te manda ser uma carta fora do baralho” – sorriu, ligeiramente na galhofa.
- “E tu, não pedes nada, Pedro?” – perguntou Rita, , entretanto propositadamente no campo de visão deste e provocando imediatamente o virar do pescoço dos outros 2 na sua direcção. Pedro não dissera nada de especial desde que entrara no café. Quase parecia estar a acompanhar a conversa como um dedo que acompanha as gotas que escorrem nas janelas, quando chova, sem lhe chegar a tocar ou a compreendê-la devidamente.
- “Hmm, desculpa?” – principiou Pedro, surpreendido com a tirada.
-“Se não vais comer qualquer coisa!” – insistiu a loira.
-“Não, não tenho fome…e também não quero gastar dinheiro.” – retorquiu com um nível de excitação em tudo semelhante ao proporcionado por uma corrida de caracóis. Afinal de contas, é habitual as coisas começarem assim, com falta de apetite.
Estavam lá os 4 do costume. Um rapaz de tez morena e cabelo liso, preto, de franja caída sobre os olhos cor de turquesa, começava a ingerir avidamente a torrada que pedira uns minutos antes, um pouco queimada, e o galão que, do balcão até à mesa redonda de ferro sustentada no chão de mosaicos ao xadrez preto e cinza, entornara uma quantidade considerável.
- “Interessante, em vez de manteiga barraram-na com carvão.” – troçou Rita, com o seu sarcasmo quase tão marcado como as borbulhas presentes na cara. Uma pena, de facto, não fosse ela a perfeita representação do estereótipo da loira de olhos azuis.
- “É, mas parece que ao menos aqui alguém se alimenta.” – zombou Ricardo, com um certo ar sério à mistura que indicava algum fundo de verdade na resposta. E tinha razão, toda a gente sabia da ligeira obsessão de Rita em relação ao seu corpo, construída durante a adolescência e ainda presente, agora que entrava na sua segunda década de existência. Nada de demasiado grave, apenas mais uma coisa para atormentar a vida já de si bastante pacata de um perfeito ió-ió emocional.
- “Vá, não sejas assim.” – principiou a sensatez em pessoa, que era Patrícia – “A esta hora é normal que as coisas já não saiam tão bem, além disso eles estão mais habituados a servir cervejas e amendoins. Ninguém te manda ser uma carta fora do baralho” – sorriu, ligeiramente na galhofa.
- “E tu, não pedes nada, Pedro?” – perguntou Rita, , entretanto propositadamente no campo de visão deste e provocando imediatamente o virar do pescoço dos outros 2 na sua direcção. Pedro não dissera nada de especial desde que entrara no café. Quase parecia estar a acompanhar a conversa como um dedo que acompanha as gotas que escorrem nas janelas, quando chova, sem lhe chegar a tocar ou a compreendê-la devidamente.
- “Hmm, desculpa?” – principiou Pedro, surpreendido com a tirada.
-“Se não vais comer qualquer coisa!” – insistiu a loira.
-“Não, não tenho fome…e também não quero gastar dinheiro.” – retorquiu com um nível de excitação em tudo semelhante ao proporcionado por uma corrida de caracóis. Afinal de contas, é habitual as coisas começarem assim, com falta de apetite.
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