As luzes, difusas e desfalcadas de vida, pouco deixavam ver senão contornos imperceptíveis. Não era mau que assim fosse - às vezes, vaguear sem consciência ocular é muito menos doloroso. O verdadeiro target point não era a essência, mas sim o formato do frasco que a guardava e que a impedia de sair.
Mas um dia saiu. Um dia, o frasco baço quebrou-se, por culpa do relâmpago de luz que sobre ele abateu. A luz trouxe algo de inesperado: um ogre, de um verde cansado, olhos retraídos nas suas grutas de conforto, dentes pontiagudos a proteger o lábio inferior. A baba escorria, as rugas na testa hedionda eram visíveis parcamente, por trás do pouco cabelo oleoso e sujo que se colava.
Não se sabe como não partiu o espelho à sua frente, na sala. Não se sabe que caminho foi o seu para chegar ali, ao dia da confrontação. Feio seria, mas não cego. Voltou-se em pânico - outro espelho. Quanto mais rodava sobre as patas descalças de unhas retorcidas, mais outro, outro e outro. Nenhuma porta de saída que se visse. Eram 1001 ogres num pranto acriançado, ampliados e tornados ainda mais feios. A baba salpicava o chão espelhado, o tecto era também de um vidro claustrofóbico.
O motivo para estar ali sozinho era óbvio - era demasiado deplorável para poder viver com os outros ogres. Com os outros ogres de cabelo oleoso e sujo, de rugas na testa e olhos encovados. De dentes espetados. De tudo o que tinha o ogre triste, só não tinham a consciência da imperfeição. Não foram os outros ogres a trancar-lhe a porta de saída, fora a sua própria mente e a sua visão doente - disformes os olhos, não o corpo.
As luzes apagaram-se novamente (não que alguma vez tivessem estado verdadeiramente acesas, vislumbra-se o corpo mas não a mente). A cama acordou suada, envolvida pelos lençóis arrepiados do pesadelo que acabavam de presenciar.
E se esse pesadelo fosse a eternidade de alguém? Pobre ogre.
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