segunda-feira, 9 de novembro de 2009
Refúgio
Outro dia passa. Mecanicamente, tranca a porta da sede da empresa e dirige-se, ausente, para o carro. Enxota os miúdos que lhe vedam a saída, e quando estes se afastam, arranca ainda a barafustar, deixando no ar um rasto de tempo que esvoaça, perdido.
Enquanto espera, impedido pela estrada, amarrado ao tráfego algo congestionado que se faz sentir, pensa.
Pensa nas dívidas a pagar, nas pessoas que tem de entreter, persuadir, engraxar. Pensa na imagem que tem de passar, naquilo que tem de ostentar, na vida da qual não se consegue libertar.
Não lhe apetece ir para casa. Ninguém o espera. Não tem nada para além da monotonia do jantar, da televisão, do seu sono insípido.
Subitamente, aquele carro cinzento ruge rumo às montanhas, num caminho tomado inconscientemente. Tenta recuperar cada segundo perdido à medida que passa no mais singular pedaço de alcatrão, de cascalho, de areia.
E quem o conduz é agredido por uma mão fria na noite [que noutras ocasiões se limitaria a fazer carícias na face], graças aos vidros abertos até ao fundo. Cada uivo atiça a adrenalina, queima a face.
Oh, está a ficar escuro. Não lhe importa, pois a esta hora ninguém o irá incomodar com perguntas irritantes, perseguições policiais aborrecidas e assuntos da empresa.
Cada curva traça o seu destino, à medida que a distância de casa aumenta.
Até que, lentamente, começa a abrandar...e esboça um sorriso, ao fim daquele longo dia [e ao mesmo tempo, tão vazio...].
Pára o carro ao acaso na berma, deixando a porta aberta. Atravessa a estrada sem prestar qualquer atenção. Começa a descer uma colina, cheia de pedras, terra solta, galhos partidos.
É difícil ver no escuro, e ele acaba por tropeçar e caír, sujando o fato.
Não lhe importa -não agora. Tira o blazer, atira-o para trás das costas e continua a correr por entre os pinheiros magistrais.
O barulho dos passos apressados, dos ramos mastigados, dos animais perturbados com aquela presença mistura-se com o grito melodioso [sobre-humano] do vento, ferindo-lhe os ouvidos.
Começa a chover. As pequenas folhas das árvores vingam-se no corpo dele, atirando contra si as gotas daquele começo de tempestade. As suas vestes ficam molhadas, deixando o seu corpo gelado.
É preciso mais do que isso para o parar; fugir do sargaço a que chama vida foi mais forte; conseguir novamente ser humano, ter o dom de sentir dor, ultrapassou as armadilhas que o caminho lhe armou.
Naquele momento, as suas 5 mãos arrepiam-se, fazem-no saber quem ele é. Nada mais lhe atravessa a mente - nada. Apenas marcar aquele momento com a intensidade da loucura.
Pisa as folhas com a determinação e vontade com que devia pisar as suas hesitações, agoniantes. Os céus tornam-lhe difícil abrir os olhos - ou será que apenas o protegem, impedindo-o de ver o seu mundo cruel?
A certa altura, chega o limite. As árvores ficaram para trás, e tudo o que resta é uma ravina cujo fundo é longínquo [da vida].
O céu parece triste - mais escuro e tenso do que o habitual. Não gosta de se ver carregado de amargura, e lança-a de novo para quem a criou.
Em breve, as nuvens irão aparecer novamente mais claras, ou até desvanecer-se; tudo ficará bem.
Os ramos espalhados pelo chão, torturados por quem ali caminhou, apenas deram lugar a outros mais fortes e mais novos.
O cheiro a terra molhada e o chilrear dos pássaros que se confunde no meio de tantos ruídos hipnotizam-no.
Terá de voltar mais tarde. Sobe com dificuldade a colina e, ao fim daquela eternidade, vislumbra novamente a estrada. Felizmente, ninguém roubou o carro. Entra, liga o motor e a chauffage com ar quente virado para si.
Por uma fracção de segundos, lembrou-se do que acabara de acontecer. Resignou-se.
Arrancou lentamente. Ao fim de alguns minutos, deixou-se confundir no meio do tumulto de carros.
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