sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Sangue humano



Chovia. Aguaceiros escuros, azuis, ruidosamente zangados.

O vidro estava embaciado. Algumas gotas escorriam, satisfeitas, naquele escorrega. Faziam novos ornamentos no desenho que ali tinha sido rabiscado com o dedo, com a precisão de um bisturi.

Ela contemplava, suspirando, aquele espectáculo poderoso, através do ecrã difuso e húmido. Que temporal intenso se abatera sobre a cidade. Esperava que as condições melhorassem no dia seguinte, pois teria de percorrer uma longa distância para visitar a sua mãe, em Bonneville.

Bocejou, com algum sono. Chegara a casa cansada daquele dia de trabalho. Ainda tivera de transportar a botija do gás ao longo de 3 andares daquele prédio, visto que a sua humilde casa não tinha gás canalizado.

Tinha o jantar na panela, ao lume. Virou costas à janela, com o intuito de verificar se já estava pronto.

Não teve tempo de dar um passo. Subitamente, percebeu que algo estava terrivelmente errado.

Petrificada, sentiu o seu corpo a ser violentamente empurrado contra a janela da cozinha. Vários pedaços de vidro cravaram-se no seu corpo, magoando como alfinetadas sangrentas.

Ao mesmo tempo, evitara vários objectos supersónicos, fumegantes, que invadiam agora o local onde o seu corpo estava.

Aquele cubículo rústico acabara de explodir, pintando de fuligem o resto do que segundos antes eram paredes brancas, com algumas rachadelas apenas.

Os seus cabelos negros perderam-se no ar, 6 pisos acima do julgamento final.

A chuva tornara-se negra, também; não, tal não acontecera porque a sua pele nela se dissolvesse.

Eram apenas lágrimas. Lágrimas de quem tem um prazo de validade rígido, incontornável; de quem sabe que tudo irá acabar em breve, de quem tinha tantos planos pela frente.

O vento soprava vertiginosamente, agitando o corpo, enquanto deixava a sua alma completamente destroçada.

Não conseguia recordar-se de mais do que pequenos fragmentos de memórias, aleatórios.

Uma sala escura, com uma senhora desmaiada no chão, e cacos de uma jarra chinesa à sua volta. Depois, uma menina com a mochila às costas, com medo do seu 1º dia, a ser empurrada por alguém e a caír no pátio da escola. E tudo se esfumou...aparecendo no seu lugar um grupo de raparigas a apontar para ela, que estava sozinha, pensativa, sentada no chão.

Tentou respirar uma vez mais. O ar estava gelado. Fechou os olhos, e aquela foi a última vez que olhou para aqueles blocos de betão, desses que fazem prisioneiros e algemam sonhos. Que ódio lhes tinha.

Subitamente, recordou-se de algo essencial, e sentiu-se quente, confortável até. A tepidez dos lençois da casa da sua mãe, onde estava protegida dos lobos maus e obscenos, albinos. Lembrou-se também de uma margem de um rio, onde estava com a sua [outrora] alma gémea, a olhar para o horizonte, de mãos dadas. A seguir, um ser minúsculo, frágil, abandonado nos seus braços.

Valeu a pena, pensou. Valeu a pena respirar aquela fragância bela, sentir os arrepios no corpo, olhar os gestos que lhe entorpeceram as entranhas e a impediam de fraquejar, hesitar. Valeu a pena lutar.

Não, ela não fora derrotada, naquele passeio de betão escuro nos subúrbios daquela localidade. Aquelas manchas no chão iriam ser vistas por todos, iriam mostrar o quão igual era aquele sangue salgado.

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